Sunday, February 1, 2015

HQ: Batman: The Cult (Batman: O Messias)

Uma das artes que mais me fascina, especialmente por causa de sua mistura de estilos, é a 9ª arte, ou seja, os quadrinhos. Sempre fui leitor de quadrinhos, desde moleque, ainda os leio. Tenho uma ligação afetiva muito grande com eles, pois foram eles que me levaram a pegar livros para ler. Também foram eles que me apresentaram os personagens que todo mundo curte nos filmes de hoje, Superman, Batman, Homem-Aranha, X-Men, enfim, os quadrinhos sempre foram para mim uma grande fonte de entretenimento e inspiração.

Quero iniciar a sessão de HQs aqui no meu blog, agora com conteúdo próprio e exclusivo, falando sobre uma das HQs que tiveram grande impacto sobre mim. Uma graphic novel ou se quiser, novela gráfica, que desde quando eu li, sempre penso nela quando surgem assuntos como liberdade de criação, castração social, identidade, censura, enfim, algo que foi para mim um dos grandes pilares para que os quadrinhos se consolidassem como arte séria. Estou falando de uma história do Batman (para quem não sabe, meu personagem favorito das HQs) que se chama The Cult (O Messias).

A história foi lançada como uma minissérie em quatro edições de Agosto de 1988 a Novembro de 1988 e mais tarde, reunida em formato de encadernado em uma só edição em 1991. Trata-se de uma história onde o Batman fica extremamente fragilizado, e quando esta fragilidade emerge, o homem-morcego, com a ajuda de Jason Todd, o segundo Robin, mostra para todos que mesmo em face da destruição, levantar, mais do que nunca, é preciso.

As quatro edições da graphic novel

Em The Cult, Batman é capturado por um grupo incomum que opera nos esgotos de Gotham City. Ele é torturado, drogado, iludido e esfomeado. Com toda essa tortura, Batman vem a sucumbir aos gracejos do Diácono Blackfire, um dos vilões mais impetuosos e cruéis que Batman já enfrentou, e também um dos mais amalucados. Nenhum outro vilão da vasta galeria do morcego havia conseguido antes tal feito; nem mesmo o Coringa, com toda sua astúcia e insanidade, havia conseguido deixar Batman, literalmente, de joelhos; Blackfire não só consegue este feito como também convence o morcego de entrar para o seu culto (daí o nome original da história).



Batman já estava algum tempo no rastro de uma gangue de capangas que saíam dos esgotos de Gotham para cometer delitos sob ordens do Diácono. Ao entrar nos esgotos, o morcego é abatido e capturado por esses capangas. Através de uma droga administrada no morcego em seu período de cativeiro, Blackfire se utiliza de métodos de ilusionismo para provar a Batman de que o vilão é a reencarnação de uma entidade sagrada na Terra. Enfraquecido pela fome e pelo efeito da droga, Batman sucumbe aos tais truques e cai de joelhos diante do Diácono, que torna-o membro da seita malígna. Isto tudo ocorre no primeiro volume da história.

Há passagens da história bastante sugestivas. O Diácono Blackfire se assemelha bastante a um líder comunista que cega seus seguidores, manipula suas cabeças e transforma seus cérebros em pó, até que todos estejam a seus pés; e se alguém tenta resistir, é abatido e possivelmente até mesmo morto.

Aqui, destaco a bela sequência silenciosa do final deste capítulo que mostra o personagem Don Perry, um sujeito pobre que vivia nos subúrbios de Gotham e conseguia um certo dinheiro através de apostas ilegais que carregava por aí, para ajudar a família. Don pretendia ser um quadrinista e desenhava para praticar sua arte, até que vieram membros da seita do Diácono e tiraram sua vida.



Há aí uma referência velada à censura, censura esta, que inclusive foi parte da história dos quadrinhos da chamada Era de Prata, período de forte repressão da mídia com o chamado "Comics Code Authority", criado em 1954.

Exemplo de anúncio da época, com o selo da mordaça dos quadrinhos

Com o CCA (leia-se censura dos quadrinhos), os artistas não podiam se exprimir livremente e ficavam privados de exibir em suas histórias qualquer coisa que fizesse apologia à violência ou sexualidade de suas personagens. Com isso, diversos bons e promissores artistas deixaram de publicar suas histórias, enquanto outros tentaram resistir bravamente a essa mordaça até verem a revisão do código do selo no início dos anos 70 que possibilitou aos artistas tratarem de temas que o selo anteriormente não permitia. Atualmente o selo não existe mais, tendo sido descontinuado em 2011.

Com isso, a história de Jim Starling passa não somente a ser um embate de forças antagônicas, mas também uma referência a trajetória das HQs aliada à própria trajetória dos EUA, especialmente no que tange à caça aos comunistas. A proposta crítica da história em si permanece ainda válida nos dias de hoje, para nos alertar em relação a líderes carismáticos com intenções escusas.

Feita esta análise, voltemos à história. Embora Batman estivesse cego em relação à natureza de seu novo líder, seus instintos e sua moral ainda serviam de compasso para suas ações, uma vez que ele se negava a matar e estava sempre questionando as ações do Diácono. Isso, é claro, não o impedia de cair na tentação quando a fome atacava ou quando a droga o fazia ter mais alucinações.



Apesar de tudo isso, o morcego encontra uma maneira de escapar e voltar às ruas de Gotham. Drogado, com fome e perdido, o morcego vagueia sem rumo e procura por comida. Aqui vemos um pouco do lado negro do morcego aflorando, uma vez que ele rouba comida e também agride policiais, despertando então seu instinto mais selvagem e primitivo. Após conseguir se alimentar e ver que as drogas e a fraqueza o cegaram, Batman retorna aos esgotos da cidade para ter sua vingança, mas está sem condições para qualquer coisa. Entra na história Jason Todd, o segundo Robin que, percebendo a longa ausência do morcego, sai a sua procura.

Aqui, Jason Todd se mostra um Robin bem diferente do Jason que veio a se descuidar e ser morto pelo Coringa na saga "Morte em Família". Digamos apenas que, sem a ajuda e suporte de Jason, Batman teria finalmente sucumbido e talvez até morrido. Jason aqui é um personagem de grande valia, pois não só encontra o morcego mas também o coloca nos trilhos, lembrando Bruce Wayne quem ele é e resgatando-o da desgraça e da humilhação. Eu passei a sentir um enorme respeito por Jason após ler esta história, as características que ele demonstra aqui nesta aventura como otimismo, determinação, coragem, espírito de combate, acabam incentivando Batman a escapar dos esgotos e voltar à mansão Wayne para a desforra final. Sem Jason, o Batman estaria literalmente perdido.



Batman e Robin passam dois volumes da história tentando escapar das garras da seita de Blackfire. Enquanto isso, Blackfire põe em prática seu esquema de transformar Gotham em um caos total, até conseguir deixá-la em estado de sítio, completamente destruída e destituída de qualquer lei e ordem. Embriagado pela derrota e pela humilhação de ser ludibriado por forças opressoras, coisa que, segundo Bruce Wayne, jamais tinha acontecido antes, Bruce fica em retiro durante uma semana inteira na mansão Wayne. É no último volume da história que Batman fará o caminho de volta para se regenerar, recupera sua auto-confiança e, com a ajuda de Jason, elabora um plano meticuloso para derrotar o Diácono, tentando fazer com que seus próprios seguidores se voltem contra ele.

Há uma virtuosa mensagem de encorajamento frente aos Golias que encontraremos em nossos caminhos, ao mesmo tempo que existe o alerta vermelho da história em relação à destruição que a fé cega e o fanatismo pode trazer. A faceta política da história jamais se contenta em alertar mas também a provar que basta apenas um indivíduo comum com um plano bem articulado para trazer o caos e a desgraça a um povo. E não importa se esse líder tenha boa aparência, ou tenha um bigodinho engraçado, ou mesmo seja barbudo ou dentuço. Tudo tem a ver com o plano. Importa se ele consegue deixar milhões de pessoas à deriva; se consegue afundar uma companhia nacional e mesmo assim conseguir o apoio do povo; importa que suas mentiras sejam vistas como verdades inquestionáveis.



Mas mesmo os maiores líderes sucumbem. Foi assim com César, foi assim com Napoleão, Genghis Khan, Hitler. Portanto, gosto da frase de Batman no último volume da história e mantenho ela guardada para o momento oportuno:

"Esse é o problema em criar monstros. O controle é difícil. O importante é as pessoas nunca sentirem medo ou fraqueza em você. Isso é um erro fatal. Se fraquejar elas se voltam contra você. Monstros exigem que seus messias sejam fortes. ELES DETESTAM SER ENGANADOS." 

Este é o grande trunfo de The Cult, a faceta política. Não somente arrancar a máscara de qualquer líder carismático e opressor mas também dar um alerta em relação às vicissitudes de homens que desejam o mundo para si. Uma história corajosa, dura e que ataca o coração do conceito autoritário, da censura e da falsa moralidade do homem que deseja ser Deus e estar acima da lei.

Uma leitura super recomendada para adultos e jovens de todas as idades. Um clássico conto sombrio de Batman e um clássico das histórias em quadrinhos, contendo o traço quase expressionista de Bernie Wrightson, as cores e a estética inteligente de Bill Wray e a fantástica narrativa de Starling, com passagens gráficas extremamente fortes e metáforas visuais impressionantes, sem contar a característica narração jornalística que é inspiração direta da obra-prima de Frank Miller, Batman: The Dark Knight Returns (Batman: O Cavaleiro das Trevas). Eu aqui sinceramente espero que, se algum dia o departamento animado da Warner/DC for querer adaptar este fantástico conto de Batman para animação como já fizeram várias vezes com outras histórias, que sigam a estética visual proposta em The Cult, que é incrível e de uma beleza singular.

Ah sim, não posso deixar de mencionar: a ideia de um grupo de capangas que operam nos esgotos de Gotham e o lado mais discursivo e influenciador de opiniões do Diácono Blackfire foram usados como inspiração em 2012 no filme The Dark Knight Rises (Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge). É possível vislumbrar um pouco da persona do Diácono na versão do vilão Bane do filme de Christopher Nolan.

Batman: The Cult (Agosto/1988 a Novembro/1988)
Título em português BR: Batman: O Messias
Nº de edições: 4
Nota: 10 / 10

Editora: DC Comics
Formato: Minissérie
Roteiro: Jim Starling
Desenhista: Bernie Wrightson
Colorista: Bill Wray
Letrista: John Costanza
Editores: Denny O'Neil, Dan Raspler

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