OK, acabei de chegar do cinema após assistir Birdman. Vamos ver, o ator, vejam, o ator molda a personagem, o herói, o vilão, a caricatura representante de nosso mundo na tela, ele molda a nossa vida verossimilhante naquele retângulo. Aquilo nos afeta de alguma forma, nos causa emoções e mexe com nossos sentimentos, nos provoca sensações, ok? Sensações, algumas vezes que não conseguimos nos desvencilhar. Isso tudo leva muitas vezes às pessoas discutirem o que acabaram de ver na tela. E a discussão pode levar a um amor ainda maior ou a uma sensação de ódio mortal pelo que acabaram de ver. Daí a crítica.
E quem adora, realmente adora. Astros muitas vezes ficam estigmatizados com seus personagens, suas caricaturas. Muita gente olha para um determinado ator e o associa com um papel que marcou sua carreira.
Eu tenho culpa disso, igualmente. Fazem 11 anos e eu ainda olho para o Choi Min-sik e vejo o Oh Dae-su de Oldboy. Olho para o Christopher Reeve e nada mais me vem a cabeça a não ser o Superman. Vejo o Michael J. Fox, velho, grisalho, com rugas e Parkinson, mas no meu subconsciente ainda vejo o jovem Marty McFly de De Volta para o Futuro. Olho o Wagner Moura, e só espero ele virar e começar a gritar "não vai subir ninguém!" ou "pede prá sair!", tamanho foi o impacto de seu Capitão Nascimento. Acontece com muita gente velha também! Tem gente que ainda vê o Sean Connery e diz, "olha, é o James Bond!"
Essa imagem é como uma tatuagem em nossos cérebros, uma marca permanente. O que nós esquecemos é que isso algumas vezes incomoda o ator, que acaba por ganhar um certo ressentimento de seu passado. Aí anos depois ele quer começar a ir para a Broadway, virar um astro dos palcos, do teatro, mas o estigma de seu passado o persegue. Fiquei mastigando essas ideias por uns instantes após o fim da projeção.
Michael Keaton passou por isso tudo. Eu não gosto da versão dele do Batman, que fique claro, ainda explicarei o porque, mas para muitas outras pessoas, ele foi o Batman em 1989. Ele sentiu na pele esse estigma, essa tatuagem que fazemos em nossas cabeças. Tanto é que seu Birdman no filme é meio que um retrato de seu Batman anos atrás. O personagem de Keaton passou por isso. Fez três filmes com o personagem pássaro e desde então tem sido muito difícil para ele conseguir outros papéis ou até mesmo emplacar peças na Broadway.
Isto até me fez lembrar de um episódio da série animada do Batman dos anos 90 envolvendo um ator, cuja voz é feita por Adam West, que fazia na TV um personagem chamado Fantasma Cinzento, que Bruce Wayne adorava assistir quando criança. É um dos meus episódios favoritos da série, Batman está tentando deter um doido chamado Incendiário Maluco, nome de um dos vilões do Fantasma Cinzento na série de TV do episódio, que tem o mesmo modus operandi que o vilão da televisão, então Batman vai atrás do ator que fazia o personagem. No episódio, vemos o mesmo dilema, o ator falido que tenta chegar a termos com seu passado.
Aqui temos Keaton não somente tentando podar as asas de seu "homem-pássaro", mas também tentando entrar em um acordo com sua vida pessoal. E que melhor analogia do filme com nossas próprias vidas ou então intertextualidade do filme com o estilo do teatro da Broadway do que a câmera de traveling que a todo momento segue os protagonistas? Não tem melhor analogia! A todo momento, salvo alguns cortes para fazer elipses temporais necessárias à dinâmica da narrativa, o filme se compõe de performances de um take só, acompanhando em tempo real a odisseia das personagens ao longo dos cenários. Isto não somente garante o efeito realista da película, como coloca o expectador como testemunha ocular dos fatos.
É muito bacana como a fotografia do filme faz você se sentir. A câmera te guia o tempo todo, numa postura totalmente voyeur, como se dissesse "olha, vem aqui agora, vamos espiar o que está acontecendo enquanto você via aquela outra coisa." Te coloca bem ao lado dos personagens, andando com eles, seguindo-os a todo momento, como se estivéssemos realmente lá. Foi muito difícil quando acabou. Eu simplesmente não conseguia sair do filme após deixar a sala de projeção. Um trabalho ímpar e fabuloso, que espero que ganhe indicações no Oscar deste ano.
E aí tem a raça que os artistas mais detestam ver na frente, os críticos. Ah, os críticos! Capazes de serem criaturas doces ou amargas, alinhadas ou rebeldes, se atores fossem super-heróis, seus arqui vilões seriam com certeza os críticos. A kriptonita destes heróis seriam as críticas negativas, capazes de destruírem carreiras. No filme temos a imagem de uma resenhista de jornal. O que nos leva ao seguinte questionamento: por que criticamos?
Há um texto muito bom de Alcides Villaça, indicado por um grande amigo meu, que diz o seguinte: a crítica "é uma fatalidade humana". Villaça ainda diz de forma muito objetiva que "a crítica nasce para compreender (não para substituir) a inquietação natural que o artifício da criação promove em nosso espírito, para enfrentar a provocadora iluminação que a arte faz incidir sobre o lugar do mundo em que atuamos."
Ainda acrescento o motivo maior que leva pessoas como eu a fazer críticas, usando uma frase da peça de teatro de Raymond Carver, repetida incessantemente por Keaton no filme: sobre o que falamos quando falamos de amor? Esse mesmo amor que nos leva a casar, a cuidar de nossos filhos, a defender ideologias... a ir ao cinema! Um dos meus grandes amores na vida, o cinema. Falo de cinema por amor, falo de música, livros, games, quadrinhos tudo pelo mesmo motivo, por amor, este grande amor que tenho pela arte e pela cultura.
O grande problema é quando um crítico, banhado em suas intenções obscuras por alguma razão, sente prazer em destruir seu objeto de análise por algum motivo pessoal. Muitas vezes o senso crítico das pessoas é afetado em decorrência deste ou daquele sentimento que certo ator ou assunto provoca. Quando o crítico deixa a razão e banha-se somente de impulso emocional, isso prejudica sua capacidade crítica. Um exemplo, se eu for uma pessoa que não gosta por exemplo do Adam Sandler, então procurarei, dentro deste escopo fazer de tudo para destruí-lo, atacando seus pontos fracos e procurando o máximo de defeitos possível em seus filmes, ao invés das qualidades. Este é o momento em que a crítica deixa de ser ferramenta de iluminação do indivíduo e passa a ser um instrumento de vendeta pessoal àquele ator, e é aí que a crítica perde seu sentido.
Eu poderia me alongar por horas neste assunto. Mas já falei o bastante. Quero ressaltar apenas as belíssimas sacadas surrealistas do filme que nos permite entender melhor, através da voz do Birdman que o personagem de Keaton escuta (parecida com a voz grossa do Batman, ironicamente), ou através de suas ilusões, o que se passa em sua cabeça. Também é uma brilhante sacada o final aberto da película. Fico imaginando até agora o que a filha do personagem de Keaton no filme viu antes de rolar os créditos. Isto fica a cargo da imaginação do expectador e retoma novamente a questão do estigma.
De uma intertextualidade brilhante consigo mesmo, inteligente e sofisticado, este filme é uma nova gema na carreira de Michael Keaton, que há muito tempo não era tão marcante quanto seu Batman ou Beetlejuice. Apoiado por um elenco fabuloso, contando com Edward Norton, Zach Galifianakis e ... aiai... Naomi Watts... oh, Naomi, minha musa, eu te perdôo por ter feito Movie 43 (Para Maiores)... enfim, um elenco de primeira linha e a direção competente e arrojada do mexicano Alejandro González Iñárritu, também diretor de Babel e Biutiful, este filme é recomendação máxima a todo cinéfilo.
Birdman (2014)
Título em português BR: Birdman (Ou a Inesperada Virtude da Ignorância)
Nota: 9 / 10
Direção: Alejandro González Iñárritu
Produção: Alejandro G. Iñárritu, John Lesher, Arnon Milchan, James W. Skotchdopole
Roteiro: Alejandro G. Iñárritu, Nicolás Giacobone, Alexander Dinelaris Jr., Armando Bo
Trilha sonora: Antonio Sánchez
Estrelando: Michael Keaton, Zach Galifianakis, Edward Norton, Andrea Riseborough, Amy Ryan, Emma Stone, Naomi Watts
Trailer:
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