Nota: 9 / 10
Primeiramente, gostaria de agradecer o meu amigo Felipe Martinelli, criador do canal Debandalarga no Youtube, e apresentador do web show Reviewtado. O cara, além de gente boníssima, também é um especialista nato em cinema brasileiro. Sempre aprendo muito com ele, e recomendo altamente seu canal, pois com ele, acabei me interessando em pesquisar sobre o cenário brasileiro da Boca do Lixo dos anos 80; o agradecimento é por ter me indicado este fã-filme, sabendo o quanto sou fã do personagem da DC Comics.
Este filme é uma produção do diretor brasileiro independente Elvis delBagno, que eu não conhecia, mas se mostrou aqui como um talento bastante promissor. Ele parece adotar aqui nesta produção muito da linguagem cinematográfica dos irmãos Coen, visto que o ritmo da narrativa é lento e várias vezes sem diálogos. Para mim, se mostrou uma experiência extremamente positiva!
Na trama, o Batman está investigando uma operação de tráfico de substâncias alucinógenas, que na verdade são medicações alteradas com compostos químicos. Dentro de um armazém da cidade do morcego, nós temos o criminoso insano Ventríloquo, e seu boneco Scarface, que estão comandando toda a operação.
O foco da história, na verdade nem mesmo é o Batman, mas sim os bandidos. Vemos o morcego, de relance, às vezes dando porrada em capangas, e outras vezes intimidando outros através do poder da teatralidade e ilusão; também podemos ver trechos onde ele é trabalhado no roteiro. Mas o foco do estudo de personagens empregado aqui é mesmo a bandidagem. E o filme acerta com louvores nesse sentido, promovendo um dos melhores estudos de personagens que eu já vi na vida!
Bruce Wayne dizia, em sua história de origem, lá no longínquo final dos anos 30, que os criminosos são tipos supersticiosos e covardes. Mais recentemente, você tem muita desta referência por aí, direta ou indiretamente, mas o diretor brasileiro parece que quis explorar a fundo o assunto, e entrar realmente na psique de um chefe mafioso psicopata e na mente daqueles que o seguem. Só que sob o olhar de uma cultura diferente da americana. Este Batman "à brasileira" é uma iniciativa a ser celebrada, ainda mais pela produção robusta do filme, ainda que às vezes tenha um ou outro probleminha.
Outra coisa que me chamou a atenção foi toda a filosofia embutida no filme. Se por um lado o visual às vezes me faz franzir a sobrancelha, e isso eu digo como fã do Batman (detalhes como o nariz pontiagudo demais da máscara, e as orelhas tortas, ou então outros detalhes visuais), por outro lado, eu gostei muito da abordagem, do conteúdo. O pensamento socrático do "só sei que nada sei" está nítido em cenas em que o Bruce, conversando com Alfred, diz que não importa quantos livros ele leia, que não consegue que eles digam quem ele é na cidade. O dilema aponta para a necessidade do próprio personagem protagonista se auto-conhecer, antes de querer promover mudanças em seu habitat. Batman deixa claro, que quanto mais tenta averiguar sua natureza, mais se perde, e quanto mais tenta penetrar nas entranhas sujas de Gotham, menos parece conhecê-la.
Além disso, temos tanto cenas do Bruce em sua mansão, quanto dos capangas dentro de um depósito. Isso me remeteu ao mito da caverna de Platão. Todas aquelas pessoas estão dentro de um contexto em que a realidade delas é aquela que eles podem ver. Eles não veem aquilo que está fora de sua caverna. O Batman sempre foi mais ou menos assim. Para ele, a batcaverna é seu refúgio, sua morada. Para ele, só a cruzada importa, nada mais. Todos estes personagens então são colocados dentro deste contexto platônico onde não conseguem enxergar algo além da escuridão de suas próprias almas. Há um diálogo bem legal entre dois capangas sobre como eles entraram nessa vida de crime, e o reforço filosófico do roteiro aliado aos diálogos, somente dá mais força a esta proposição. Uma sacada muito inteligente e que faz pensar.
Entre uma cena ou outra, ou mesmo entre sequências de flashback, há passagens de surrealismo, em especial, na cena que parece homenagear Zé do Caixão. O coveiro barbudo que está enterrando a mulher de um capanga de Scarface começa a falar como se fosse uma clara e escancarada referência à Mojica, com a capa preta, cartola e tudo. Tem até o jeitão afetado característico de Mojica de recitar suas falas. Só faltou as unhonas! Uma sequência surreal do filme, digna de ser notada, ainda mais pela filosofia sobre a efemeridade de uma vida, o fim do processo da carne, quando os vermes se deliciam com a nossa carcaça.
A produção é de baixíssimo orçamento. Se você cansou a vista com todas aquelas explosões e pirotecnias de Batman v Superman: Dawn of Justice, espere até vislumbrar a simplicidade e objetividade desta produção brasileira, que com muita filosofia e bons diálogos, conseguiu nos trazer uma trama muito mais interessante. Claro, a pirotecnia e as explosões fazem sim, parte do espetáculo de qualquer filme de herói que se preze, eu não estou condenando isso de forma alguma, mas por outro lado, se a coisa não for bem dosada, acaba ficando cansativa demais. Este filme do diretor brasileiro então vem trazer um contra-peso interessante em relação aos exageros pirotécnicos do filme de Zack Snyder.
Só que... o filme às vezes exagera na dose. As sequências teatrais são muito bem realizadas, ainda mais nos segmentos de sonhos, mas o diretor se deixa levar demais pelo formato. Além disso, há trilha sonora demais em um filme só. Eu creio que o diretor poderia se valer de menos referências musicais óbvias (Bob Dylan, Simon & Garfunkel, Guns N' Roses, Rolling Stones, Pink Floyd, The Doors e pasmem... até Raul Seixas!) e apostar mais em um score próprio. Algumas músicas até funcionaram em certos momentos, mas às vezes eu achei que o diretor se deixou levar demais pela trilha musical, tanto que o filme ficou parecendo mais um musical Rock do Batman.
Tem uma parte do filme que eu até pausei e fiquei pensando "não, cara, não, agora ficou galhofa demais... não, pára tudo!" É a hora que o Scarface se vê entediado e pede para uma banda dos capangas tocar uma música!
OK, peraí... eu consigo entender e até deixar passar os exageros referenciais nas músicas escolhidas para o filme, mas isso já é demais! Aquilo ultrapassa os limites do aceitável no que se refere ao surrealismo empregado na fita. Tudo bem que o diretor quis fazer um lance estético a lá Tarantino na sequência de luta do Batman contra os capangas em fundo de tela azul, só com sombras, mas meu, ficou muito galhofa, na boa! Pegando uma frase do Ventríloquo no filme, se os sapatos do cara solitário tem vida própria e dançam qualquer ritmo, então eu acho que o diretor deu asas demais para os seus sapatos aqui nesta sequência.
Mas enfim, a trilha sonora é ótima, isso não podemos negar. O intertexto do filme com a produção noir de Howard Hawks, o Scarface original, ficou fantástico, isso sem falar das menções a outras obras do cinema, e o lance da caixa de um dos capangas que batiam papo em um dado momento do filme, teve uma resolução muito bacana e com uma visão otimista em cima de toda filosofia trabalhada no filme.
De forma geral, achei uma experiência bastante diferente e positiva, e recomendo a todos este filme de Elvis DelBagno, muito bom mesmo, e com um roteiro ótimo e cheio de conteúdo, apesar dos exageros já destacados, isso sem contar os enquadramentos de cena e a paleta de cores escolhida para o filme que achei excelente, inclusive até mesmo com algumas tomadas alternando lindamente para a paleta preta e branca. É uma produção robusta, com uma grande profusão de ótimas ideias, com atuações boas, embora um tanto teatrais em momentos que achei estranho esta aproximação, mas de forma geral, muito bom o trabalho dos atores aqui seguindo a proposta.
Eu gostaria de ter visto este Batman "made in Brazil" antes, pois se trata de uma produção de 2014! E que ganhou diversos prêmios, conforme indica a tela de abertura da fita. Mas fico muito feliz de tê-lo visto agora, especialmente em um ano em que estamos com uma grande profusão de produções baseadas em HQs, e mais uma vez, agradeço imensamente ao meu camarada Felipe Martinelli pela indicação. O filme pode ser assistido gratuitamente pelo Youtube ou pelo Vimeo, vou postar ele aqui no blog, junto com o trailer, para que todos possam ver. Recomendadíssimo.
Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo (2014)
Outra coisa que me chamou a atenção foi toda a filosofia embutida no filme. Se por um lado o visual às vezes me faz franzir a sobrancelha, e isso eu digo como fã do Batman (detalhes como o nariz pontiagudo demais da máscara, e as orelhas tortas, ou então outros detalhes visuais), por outro lado, eu gostei muito da abordagem, do conteúdo. O pensamento socrático do "só sei que nada sei" está nítido em cenas em que o Bruce, conversando com Alfred, diz que não importa quantos livros ele leia, que não consegue que eles digam quem ele é na cidade. O dilema aponta para a necessidade do próprio personagem protagonista se auto-conhecer, antes de querer promover mudanças em seu habitat. Batman deixa claro, que quanto mais tenta averiguar sua natureza, mais se perde, e quanto mais tenta penetrar nas entranhas sujas de Gotham, menos parece conhecê-la.
Além disso, temos tanto cenas do Bruce em sua mansão, quanto dos capangas dentro de um depósito. Isso me remeteu ao mito da caverna de Platão. Todas aquelas pessoas estão dentro de um contexto em que a realidade delas é aquela que eles podem ver. Eles não veem aquilo que está fora de sua caverna. O Batman sempre foi mais ou menos assim. Para ele, a batcaverna é seu refúgio, sua morada. Para ele, só a cruzada importa, nada mais. Todos estes personagens então são colocados dentro deste contexto platônico onde não conseguem enxergar algo além da escuridão de suas próprias almas. Há um diálogo bem legal entre dois capangas sobre como eles entraram nessa vida de crime, e o reforço filosófico do roteiro aliado aos diálogos, somente dá mais força a esta proposição. Uma sacada muito inteligente e que faz pensar.
Entre uma cena ou outra, ou mesmo entre sequências de flashback, há passagens de surrealismo, em especial, na cena que parece homenagear Zé do Caixão. O coveiro barbudo que está enterrando a mulher de um capanga de Scarface começa a falar como se fosse uma clara e escancarada referência à Mojica, com a capa preta, cartola e tudo. Tem até o jeitão afetado característico de Mojica de recitar suas falas. Só faltou as unhonas! Uma sequência surreal do filme, digna de ser notada, ainda mais pela filosofia sobre a efemeridade de uma vida, o fim do processo da carne, quando os vermes se deliciam com a nossa carcaça.
A produção é de baixíssimo orçamento. Se você cansou a vista com todas aquelas explosões e pirotecnias de Batman v Superman: Dawn of Justice, espere até vislumbrar a simplicidade e objetividade desta produção brasileira, que com muita filosofia e bons diálogos, conseguiu nos trazer uma trama muito mais interessante. Claro, a pirotecnia e as explosões fazem sim, parte do espetáculo de qualquer filme de herói que se preze, eu não estou condenando isso de forma alguma, mas por outro lado, se a coisa não for bem dosada, acaba ficando cansativa demais. Este filme do diretor brasileiro então vem trazer um contra-peso interessante em relação aos exageros pirotécnicos do filme de Zack Snyder.
Só que... o filme às vezes exagera na dose. As sequências teatrais são muito bem realizadas, ainda mais nos segmentos de sonhos, mas o diretor se deixa levar demais pelo formato. Além disso, há trilha sonora demais em um filme só. Eu creio que o diretor poderia se valer de menos referências musicais óbvias (Bob Dylan, Simon & Garfunkel, Guns N' Roses, Rolling Stones, Pink Floyd, The Doors e pasmem... até Raul Seixas!) e apostar mais em um score próprio. Algumas músicas até funcionaram em certos momentos, mas às vezes eu achei que o diretor se deixou levar demais pela trilha musical, tanto que o filme ficou parecendo mais um musical Rock do Batman.
Tem uma parte do filme que eu até pausei e fiquei pensando "não, cara, não, agora ficou galhofa demais... não, pára tudo!" É a hora que o Scarface se vê entediado e pede para uma banda dos capangas tocar uma música!
OK, peraí... eu consigo entender e até deixar passar os exageros referenciais nas músicas escolhidas para o filme, mas isso já é demais! Aquilo ultrapassa os limites do aceitável no que se refere ao surrealismo empregado na fita. Tudo bem que o diretor quis fazer um lance estético a lá Tarantino na sequência de luta do Batman contra os capangas em fundo de tela azul, só com sombras, mas meu, ficou muito galhofa, na boa! Pegando uma frase do Ventríloquo no filme, se os sapatos do cara solitário tem vida própria e dançam qualquer ritmo, então eu acho que o diretor deu asas demais para os seus sapatos aqui nesta sequência.
Mas enfim, a trilha sonora é ótima, isso não podemos negar. O intertexto do filme com a produção noir de Howard Hawks, o Scarface original, ficou fantástico, isso sem falar das menções a outras obras do cinema, e o lance da caixa de um dos capangas que batiam papo em um dado momento do filme, teve uma resolução muito bacana e com uma visão otimista em cima de toda filosofia trabalhada no filme.
De forma geral, achei uma experiência bastante diferente e positiva, e recomendo a todos este filme de Elvis DelBagno, muito bom mesmo, e com um roteiro ótimo e cheio de conteúdo, apesar dos exageros já destacados, isso sem contar os enquadramentos de cena e a paleta de cores escolhida para o filme que achei excelente, inclusive até mesmo com algumas tomadas alternando lindamente para a paleta preta e branca. É uma produção robusta, com uma grande profusão de ótimas ideias, com atuações boas, embora um tanto teatrais em momentos que achei estranho esta aproximação, mas de forma geral, muito bom o trabalho dos atores aqui seguindo a proposta.
Eu gostaria de ter visto este Batman "made in Brazil" antes, pois se trata de uma produção de 2014! E que ganhou diversos prêmios, conforme indica a tela de abertura da fita. Mas fico muito feliz de tê-lo visto agora, especialmente em um ano em que estamos com uma grande profusão de produções baseadas em HQs, e mais uma vez, agradeço imensamente ao meu camarada Felipe Martinelli pela indicação. O filme pode ser assistido gratuitamente pelo Youtube ou pelo Vimeo, vou postar ele aqui no blog, junto com o trailer, para que todos possam ver. Recomendadíssimo.
Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo (2014)
Direção: Elvis Delbagno
Produção: Marcelo Araújo Barreto, Abigail Selznick, Márcia Soares
Roteiro: Elvis Delbagno, Ricardo Syozi (baseado em personagens criados por Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson)
Sound design: André Louis Ferraz
Estrelando: Lorenzo Martin, Amaral Andrade, Caetano Martins, Dennis Mendes, Roberto Rivaldi, Pedro Abhull, Augusto Antunes, Gustavo Braga, Luis Carlos, Vinicius Colangelo, André Cunha, Daniel De Almeida, Anderson Haag, Wilson T. Jardim, Igor Kalisch, Daniel Oliva, Zeca Prudente, Rafael Reigado, Marcos Rocha, Acauã Sol, Paulo Souza, Adriano Süto, Arnaldo Süto
Assistir filme completo:
Trailer:
Trailer:
Vai parecer doideira, mas só assisti a esse filme nesta semana, mais de um ano de tê-lo recomendado a você - e fiz questão de voltar pra ver sua opinião.
ReplyDeleteBela resenha, até me fez perceber umas coisas que não tinha sacado, mas a parte xaropona da luta do Batman contra os capangas, fora outras partes viajantes, me pareceram momentos de "cinema de arte" do filme - que já é um "cinema de arte de super-herói" na sua proposta.
Por ser meio pretensioso nisso, até desculpei o longo tempo empregado em cada inserção de trilha musical, embora o que tenha me incomodado mais nisso foi quando a trilha saía, sem integração com a cena, apenas saindo em fade... meio broxante. (a outra coisa que me desagradou foi o Batman/Bruce Wayne ter cara pontuda de rato)
Mas, no geral, é um filme legal e com uma proposta diferente de abordar o heroísmo - com fan films tão bem feitos atualmente, mas que insistem no ritmo louco do gênero de ação, é uma boa pedida.
Muito bom, Ricardo!